aquele instante;

21.11.07

...então houve um instante, independente do momento anterior, ele aconteceu; e que mania os malditos tinham de surgir nas mais inoportunas ocasiões! Entre o momento que estacionava o carrinho, já cheio de compras, e se reclinava ligeiramente para observar o preço do arroz, parou. Com alguma reclamação, que não foi propriamente ouvida, mas adivinhada pela face amarga – não que as faces rotineiras costumassem ser gentis – da senhora que vinha na direção oposta.

De que importava? As pessoas estavam mesmo sempre reclamando, devia ser algum tipo de prazer contar der quantas coisas se tinha sido possível resmungar em determinada situação. No trânsito a tarefa parecia muito bem sucedida, talvez como uma estranha maneira de passar o tédio, ou, quem sabe, usava-se das buzinas como um jeito desesperado de ser visto, porque, de outra forma, ninguém repararia: ‘Estou aqui! Olhem para mim!”

Agora, entretanto, as mais agudas buzinas podiam soar num irritante coro que ela não ouviria. Os instantes costumavam ter essa característica um pouco incomum de torná-la assim cega surda muda pelo tempo que durassem, e podiam levar horas e horas. O que se passava também variava, sendo fixa apenas uma sensação de: estar fazendo sentido, da sua verdade intrínseca superando toda a vida externa. O aumento do preço do filé, os filhos que logo chegariam da escola, a matéria que precisava terminar até o fim do dia ficaram em segundo plano ao surgir aquela fortíssima certeza de estar sendo, plenamente, ela mesma.

Ao contrário de tantos, massacrados pela rotina, ela ainda era. Nesse momento, não pôde deixar de lembrar-se dos seus dezoito anos, quando os instantes e a certeza no ser lhe eram tão mais fundamentais, e da madrugada insegura que passou, alimentada por gelo e biscoito recheado, escrevendo a si mesma uma promessa de que nunca viraria umas das outras. Por mais difícil que fosse. Jurou que não calaria jamais a parte inquietamente encantada – e encantadora – de si. Tamanha foi a supresa ao constatar a promessa ainda válida que precisou, ali mesmo, no meio da sessão de limpeza do mercado do bairro, abrir um enorme sorriso.

Não lhe pareceu muito bem aceito, e de novo as recordações da juventude lhe irromperam com aquela sensação de achar-se sempre tão deslocada, mas estava suficientemente certa de si mesma para não se importar. Tampouco importou-se, ao chegar no caixa para pagar, de descobrir que havia esquecido o arroz; ficasse para outro dia. Nesse dia, apenas tomou seu carro, sintonizou numa agradável estação de rádio e voltou à casa. Sem ouvir ou produzir qualquer som de buzina. Sempre soube que não seria boa jogadora na distração dos entediados de suas próprias vidas.

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